“As Meninas”
Lygia Fagundes Telles
O contexto histórico em que a obra foi publicada, o desenvolvimento de cada personagem, a forma como os acontecimentos são descritos, o acesso que temos ao pensamento de cada uma — tudo isso compõe um romance em constante movimento, que se desenrola em apenas dois dias.
É uma história que te convida a continuar estudando depois: sobre a autora, o enredo, os enigmas, o contexto.
As Meninas se passa em São Paulo durante os anos de chumbo da ditadura militar, onde acompanhamos o entrelaçamento das vidas de três jovens universitárias que dividem o mesmo pensionato: Lorena, Lia e Ana Clara. Cada uma delas carrega um mundo próprio — suas angústias, contradições, desejos e feridas — e, juntas, revelam um retrato fragmentado e profundamente humano da juventude brasileira naquele período.
Durante a narrativa, temos acesso à voz particular dessas três meninas. Essa técnica é chamada de “fluxo de consciência” — e é justamente ela que dá um toque especial ao livro. Longe da estrutura tradicional, a história é contada a partir dos pensamentos de cada uma das personagens. Sabe essa voz interna que todos nós temos? Pois é. É ela, em sua forma mais crua e íntima, que nos conduz ao longo da trama.
Agora imagine: um livro em que a narrativa é construída a partir do pensamento de alguém, exatamente no momento em que ele acontece — sem uma linha lógica definida. E mais: são três pensamentos diferentes, de três meninas, que se alternam sem aviso prévio. Cabe a você, leitor, identificar quem está falando — ou melhor, pensando — a cada momento.
Sim, pode parecer desafiador, mas, à medida que conhecemos cada uma delas e acessamos suas singularidades, a leitura se torna mais fluida.
“Se eu não falasse tanto em fazer amor, se Ana Clara não falasse tanto em enriquecer, se Lião não falasse noite e dia em revolução…”
Ana Clara é o retrato da confusão. A mais bonita das três, mas tão perdida em si mesma, tão atravessada pelos traumas que o mundo lhe impôs, que mal sobra tempo ou energia para se preocupar com qualquer outra coisa. É constantemente atravessada pelo exterior. Frágil.
Ana Clara é marginalizada. Carrega uma infância de pobreza, marcada por uma mãe prostituta e um pai ausente. Vítima de negligência e abuso, encontra nas drogas, na fantasia do dinheiro e na relação com o masculino uma tentativa desesperada de fuga.
Sua realidade é um massacre constante — e ela vive na esperança de que, amanhã, as coisas mudem, o dinheiro chegue e, enfim, ela consiga escapar dessa tortura existencial.
Fico me perguntando se o noivo, que nunca chega, é de fato real ou só mais uma tentativa mental de sobrevivência.
Lia é guerrilheira. Filha de um alemão ex-nazista com uma mulher baiana, carrega em si a contradição histórica e o desejo de transformação. Dedica seu tempo à militância e parece carregar o peso do mundo nas costas.
Lia representa a consciência de classe, a urgência da luta política, a necessidade do questionamento. Enquanto suas amigas estão mergulhadas em dores íntimas e subjetivas, Lia está voltada para o coletivo, para a revolução. Está se organizando para fugir do país com Miguel, seu namorado, que se encontra preso e será libertado junto a outros estudantes numa troca pelo embaixador dos Estados Unidos, sequestrado pela resistência.
Por último, Lorena — a burguesinha que vive em sua própria concha. Carrega uma malícia quase infantil, onde tudo é envolto por uma lente filosófica e idealizada. Passa os dias em seu quarto, à espera de um telefonema que nunca vem, de seu amante.
Lorena vive em um mundo só dela e revela ao leitor a tensão entre a pureza esperada — o casamento, a virgindade — e o desejo latente, a curiosidade pelo sexo, que a atravessa o tempo todo. Seu amante é um homem mais velho, médico, com quem manteve breves trocas de cartas, e a quem idealiza quase como um personagem de romance.
“Se eu não falasse tanto em fazer amor, se Ana Clara não falasse tanto em enriquecer, se Lião não falasse noite e dia em revolução.”
Além da construção das personagens, muito se fala sobre o contexto histórico em que a obra foi publicada.
O ano era 1969, e o Brasil vivia sob a ditadura militar — mais especificamente, os anos de chumbo. E o que isso tem a ver com o livro? Tudo.
A narrativa nos coloca de frente com temas como sexo, drogas, guerrilheiros, oposição política, repressão — e, inclusive, a descrição de uma sessão de tortura.
Não é apenas a história dessas três meninas — é também o retrato de um país adoecido, onde crescer significa, muitas vezes, sobreviver.
Algumas observações pessoais
Quando li que a trama se passa em apenas dois dias, pensei que nada aconteceria, mas estava bem enganada. Pelo contato direto que temos com o pensamento das meninas, tudo parece acontecer o tempo todo. É um universo inteiro dentro de cada uma.
Não precisamos de grandes ações, muitos personagens ou cenários mirabolantes. O foco são elas — e esse detalhe me tocou profundamente.
É sobre o jeito como falam do dinheiro, o apelido que cada uma recebe, suas diferenças e angústias.
Confesso que o capítulo 8 me chocou muito. Não estava esperando por aquilo, e, a partir dele, senti a história ficando cada vez mais densa.
O final é trágico. Me pegou desprevenida e ainda não entendi completamente a atitude das meninas diante do acontecido.
Acredito que essa conclusão nos abre espaço para diversos pensamentos, questionamentos — e também um pouco de confusão.
Mas, afinal, o que seria da literatura sem esse espaço de dúvida e troca?